quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

A Nice Pair


Pan era um deus da mitologia grega. Sua figura mezzo bode, mezzo humana é para sempre associada àquela flautinha... a flauta de Pan. No fim do século XIX houve um crescente interesse em reviver esse mito por parte de escritores e pintores. Isso perdurou até a modernidade do Séc. XX, representada pela referência em um dos símbolos do império Disney (Peter Pan, naturally), e na inclusão de figuras pan-like em um dos segmentos do clássico Fantasia (1940), também do velho Walt.
Ainda em 1908 um cara chamado Kenneth Grahame escreveu um livro de nome "The Wind in the Willows" (O Vento nos Salgueiros), um clássico da literatura infanto-juvenil. Este livrinho era um dos favoritos de Roger Keith Barrett. "The Piper at the Gates of Dawn" é o título do sétimo capítulo de Wind in the Willows, e o 'flautista' do título refere-se a Pan.

Uma das referências que o Pink Floyd faz a Syd na música "Shine on Crazy Diamond" é essa mesmo: "You Piper". Ele foi o Pan para o Floyd. Ao tocar sua 'flauta' a mágica foi criada na forma de uma das maiores e mais aventureiras bandas da história do rock. Acima do rock, na verdade, o Floyd é daquelas bandas que criaram uma estética própria, partindo de alguma raiz tradicional (blues, folk, etc.) criando uma identidade sonora única como fizeram os Byrds, Beach Boys, Beatles ou Hendrix. Se ouvirmos atentamente toda a discografia da banda, fica claro que a sonoridade do disco de estreia é de verve única. Mesmo "Take up thy stethoscope and walk", de Roger Waters, soa como uma música de Syd - a guitarra dessa música é a mais frenética do disco.


Tocando juntos desde 1962, os três estudantes de Arquitetura Roger Waters, Richard Wright e Nick Mason, mais o estudante de artes Roger 'Syd' Barrett adotaram o nome The Pink Floyd a partir de 1965. Logo se infiltraram no crescente movimento underground londrino representado por bandas como The High Numbers (que virou The Who), The Kinks; ou por coletivos das artes plásticas como os holandeses do The Fool. A banda começou a criar um nome no circuito justamente por uma associação a artistas visuais que criavam projeções psicodélicas durante os concertos, o que imediatamente associou o som do grupo a essa nova onda, impulsionada pelo consumo de ácido lisérgico (não proibido na época), o qual logo virou rotina para nosso pan-Syd. Finalmente se profissionalizando, o primeiro single foi lançado em março de 1967: "Arnold Layne" é uma canção pouco convencional, que de cara dava uma boa ideia dos talentos de Barrett como compositor, letrista, guitarrista e vocalista. Sua letra sobre um personagem "baseado em fatos reais" travesti que tem como hábito roubar roupas de baixo femininas não pegou bem com a conservadora BBC e foi prontamente banida das rádios. Porém, o estrago já estava feito. O lado B, "Candy and a Currant Bun" tinha como título original "Let's roll another one", em uma clara referência à maconha. O próprio Waters convenceu Syd a mudar o título; ainda assim os executivos da gravadora deixaram passar o verso "Oh don't talk with me/ Please just fuck with me". Bem mais obscura que Arnold Layne, que merecidamente foi incluída em diversas compilações, como "Echoes", de 2001, "Candy" foi prejudicada pela produção. Até Pete Townshend já foi citado dizendo que o Floyd (de Syd) em disco não traduz o que a banda produzia ao vivo (e isso não foi um elogio).

Bem melhor se saiu o segundo compacto, "See Emily Play" ("Scarecrow" no lado B), tanto em termos de produção (bem mais elaborada que Arnold) quanto em posição nas paradas. Também conhecida à época como "Games for May", See Emily Play foi lançada em Junho do 'verão do amor', um mês antes da estreia em LP, e é tão boa que foi colocada como abertura da versão americana original do debut Piper at the Gates of Dawn. A capa do single foi desenhada por Syd Barrett, com o 'The' já retirado do nome!

Com as boas vendas, o quarteto recebeu 5.000 libras da EMI para gravar o disco de estreia, com horas ilimitadas e total liberdade no estúdio, sob a condição de trabalharem com o confiável Norman Smith. O que eles não sabiam é que longe de ser um líder convencional, Syd tinha sua própria ideia de como se gravar um LP. De cara, gravaram "Interstellar Overdrive" uma jam instrumental que já editada passa dos 09 minutos. A fúria sônica das guitarras de Syd, aliada aos teclados viajandões de Richard Wright são o grande barato da música, que ainda inclui um efeito de pan (nota do autor: essa conexão não foi intencional rs.) na volta ao riff principal; isso me lembra o fusca do Snoozer Clínio, no qual ouvíamos isso em alturas não recomendadas por profissionais de saúde, e o efeito causado pela forma circular do "Azulão" fazia o som literalmente rodar sobre nossas cabeças. Bons tempos...

"Matilda Mother" foi também das primeiras trabalhadas pro disco. Uma versão "early take" dessa música cantada por Richard Wright foi incluida na compilação An Introduction to Syd Barrett, produzida por David Gilmour em 2010 (e neste post também!). As letras da estrofe foram completamente modificadas na versão final, mantendo-se apenas o refrão (cantado por Syd).


The Piper At The Gates of Dawn, o disco, é feito de altos e altos. Não há uma música sequer em que a banda  não soe inovadora por um ou outro aspecto. Até um filler como "Pow R. Toc H." possui achados interessantes se ouvida com atenção. A abertura com "Astronomy Domine" é de uma genialidade sem fim. A métrica quase infantil, como alguém interpretando a leitura de um manual de bruxaria enquanto bate os pés no chão. É também o marco zero do space rock: antes da metade da música uma pausa é preenchida apenas por uma nota da guitarra, com os instrumentos flutuando de volta pro arranjo. A voz do empresário do grupo soa como algo que você ouviria em uma viagem interplanetária, e isso ajuda no clima, assim como o uso de eco e efeitos processados. É bom lembrar: o acordo da gravadora era 'liberdade total'... "Lucifer Sam" também possui essa qualidade psicodélica, com efeitos bastante interessantes. O órgão é, como sempre, responsável por boa parte da identidade sonora do Pink Floyd. "Flaming" é outra pérola, novamente com algo de infantil em como Syd canta 'yippee, you can't see me...'.

No lado B, com boa parte tomado por "Interstellar Overdrive" sobram 04 musiquinhas: "The Gnome" é uma fofura de canção-de-gnomo. A letra de "Chapter 24" é baseada no referido capítulo do I Ching, o 'Livro das Mudanças". Em "The Scarecrow" há um revezamento de fórmula de compasso que a torna difícil de bater o pezinho, exceto no trecho final, quando um violão com volume mais alto do que estávamos ouvindo puxa um riff repetitivo com um violoncelo fazendo um bordão aliado ao riff do baixo, encerrando a música em fade-out. Encerrando o álbum, "Bike" desafia qualquer músico a adivinhar a fórmula de compasso, que obedece à métrica da letra brilhantemente arquitetada por Syd. E o final, a "sala de temas musicais" da letra toma forma numa cacofonia, como que indicando ao ouvinte que dessa banda você pode esperar tudo (e é exatamente essa deixa que o futuro Floyd poria em prática a partir do ano seguinte).

Último compacto lançado pelo Floyd em 1967, "Apples and Oranges" é aquele em que Syd canta "I'm feeling very Pink". A gravação e a sonoridade do lado B "Paintbox", de Wright, é bem mais limpa e não parece ter vestígios da presença de Barrett na gravação. A essa altura, David Gilmour já andava substituindo o Syd, que por vezes ia pros shows porém permanecia imóvel... O quinteto chegou a posar para fotos, mas internamente Syd nunca voltaria a trabalhar normalmente como membro do grupo, até ser chutado da banda após o lançamento do segundo álbum....



O Floyd de 1968 a 1970 é um reflexo do que aconteceu com Syd. Afinal ele não era 'só' o fundador e líder, como autor de 95% das composições do grupo. O esforço de superação do grupo consiste numa fase errática, que não agrada todo o tipo de ouvinte, fazendo a cabeça daqueles que apreciam experimentações viajandonas, se é que você me entende... Mas antes de chegar em suítes de 20min eles haviam de provar a si mesmos e ao mundo que conseguiriam sobreviver 'apesar' de Barrett. Em "A Saucerful of Secrets" ele ainda é da banda, apesar de ter uma única contribuição ("Jugband Blues"). E mesmo tendo uma óbvia influência em "Corporal Clegg" (alguém podia jurar que é a voz de Syd no refrão), o próprio Barrett desmentiu nos anos 70 ter participado da gravação dessa música de Waters, cuja letra é a primeira que faz referência à guerra, tema recorrente para o baixista, uma década na frente.

Também é de Roger Waters a introdução do álbum: "Let there be more light" começa com um riff do baixo, e é a primeira música do Floyd com vocais e solo de guitarra de David Gilmour. Ainda de Waters é "Set the controls..." que, assim como a faixa título e o B-Side "Careful with that axe, Eugene" sairiam mais tarde em versões ao vivo no Ummagumma de 1969 e no home video Live at Pompeii, com show de 1971. Ou seja, dá pra concluir que o som que o quarteto Waters-Wright-Mason-Gilmour apostava como o som do Floyd pós-Barrett era esse mesmo: viajandão, calcado em longas jams e por vezes barulhento.
As duas composições de Richard Wright são as mais calmas e também as mais ricas melodica e harmonicamente: "Remember a day" e "See-saw".

Também é de Wright a autoria do single "It would be so nice" que, assim como "Point me at the sky" foram solenemente ignorados na compilação Relics, de 1971, ao passo que seus lados B foram incluídos. "Point me at the sky" é considerada pela banda algo de se ter vergonha, e realmente não é uma música muito memorável, a única coisa que me chama a atenção é o baixo pesadão, pouco comum no som do Floyd. Já "It would be so nice" é uma pérola, e seu refrão é a coisa mais Syd Barrett de um Pink Floyd sem Barrett, e é bem provável que essa tenha sido mesmo a intenção, quando o compacto foi lançado todo o material de imprensa era o do Floyd com Barrett - ele inclusive figura na capinha...
 "Julia Dream" é uma musiquinha bucólica, daqueles tipos que Roger Waters retomaria em Ummagumma: voz e violão, além de uma flautinha. A já citada "Careful with that axe, Eugene" tem em sua versão de estúdio uma maior presença do teclado improvisando, a música não tem ainda o ataque característico da versão ao vivo e os berros de Roger é uma coisa mais de fundo, o que particularmente acho que funciona mais...

Em tempo: "A Nice Pair" foi o nome de um LP duplo lançado nos anos 70 que reunia os dois discos deste post, sem os compactos, claro.

Seguem os tracklists:

The Piper at the Gates Down (2011 Remaster) + 1967 Singles

01 Astronomy Domine
02 Lucifer Sam
03 Matilda Mother
04 Flaming
05 Pow R. Toc H
06 Take Up Thy Stethoscope and Walk
07 Interstellar Overdrive
08 The Gnome
09 Chapter 24
10 Scarecrow
11 Bike
12 Arnold Layne (Single A-Side)
13 Candy and a Currant Bun (Single B-Side)
14 See Emily Play (Single A-Side)
15 Matilda Mother (Alternative Version)
16 Apples and Oranges (Single A-Side)
17 Paintbox (Single B-Side)
+ scans


All songs by Syd Barrett, except tracks 05 and 07 (Barrett/ Waters/ Wright/ Mason), 06 (Roger Waters) and 17 (Richard Wright)

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A Saucerful of Secrets (2011 Remaster) + 1968 Singles

01 Let There Be More Light (Roger Waters)
02 Remember a Day (Richard Wright)
03 Set the controls for the heart of the sun (Roger Waters)
04 Corporal Clegg (Roger Waters)
05 A Saucerful of Secrets (Waters/ Wright/ Mason/ Gilmour)
06 See-Saw (Richard Wright)
07 Jugband Blues (Syd Barrett)
08 It Would Be So Nice (Richard Wright) (Single A-Side)
09 Julia Dream (Roger Waters) (Single B-Side)
10 Point me at the sky (Waters/ Gilmour) (Single A-Side)
11 Careful with that axe, Eugene (Waters/ Wright/ Mason/ Gilmour)
+ scans


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