domingo, 24 de outubro de 2010

Electronic Sound [1969]

Em 1969, o mundo ocidental vivia no mundo da Lua. Melhor dizendo, a corrida espacial entre EUA e URSS inspirava não só músicos, poetas e cineastas, mas era parte do vocabulário do cotidiano, visto que tudo que os yankees consideram oficialmente relevante parece reverberar culturalmente. Um ano antes, Stanley Kubrick através de seu "2001: Uma Odisséia no Espaço", revelou o que o jazzista doidão Sun Ra sintetizaria em alguns anos: "space is the place".
Mas pera ae, a capa desse disco aí ao lado diz "produced by George Harrison", né o cara dos Beatles? É. Ele fez um disco de música eletrônica (gargalhadas histéricas). "Electronic Sound" é mesmo uma viagem, bixo. Nas palavras do pai da criança: "pode-se chamar de avant garde, mas uma descrição mais adequada seria (como diria meu velho amigo Alvin) pista avant garde!". Entendeu?

Este foi um dos dois lançamentos da Zapple, subsidiária da Apple Corps., empresa fundada pelos besouros um ano antes. John Lennon (sua futura conexão com Zappa me deixa intrigado...) era o principal entusiasta dessa vertente vanguardista, tendo sido responsável pela inclusão de "Revolution #9" no álbum branco. Apesar de Paul brincar com "música séria" bem antes (vide post sobre o Revolver), nessa época ele preferiu ficar de fora das maluquices, e George resolveu dar sua contribuição (ele também havia colaborado em "Revolution #9", ao contrário de Paul). Só que este "Electronic Sound" tem pouco ou nada ver com a série Unfinished Music de John & Yoko, estando estritamente presa a seu título. Como disse, é um disco de música eletrônica. Trata-se de duas faixas (cada uma ocupando um lado do disco) onde o experimento sonoro é simplório ao ponto de podermos visualizar o cabeludo brincando de cientista maluco com seu Moog. E como todo sintetizador, dá pra fazer um bocado de barulho. "Under the Mersey Wall", a primeira faixa parece definitivamente trilha sonora de filme espacial. Há de aparecer algum doido para sincronizá-la com 2001! Já "No Time or Space" é bem mais tensa, e menos interessante. Também é intenso o uso do chamado "ruído branco", que foi aproveitado na introdução de "I Remember Jeep", presente no All Things Must Pass. Curioso mesmo é que Bernie Krause, creditado como assistente da sessão realizada na California em Novembro de 68, processou Harrison alegando que o que foi lançado ali no lado 2 consistia de sua própria demonstração de como operar o Moog III. Verdades ou mentiras, o fato é que a outra gravação data de fevereiro do novo ano. Georginho juntou 1+1, pintou essa lindeza de capa, e pronto, virou vanguardista (rs.). E antes de julgar, porque não ouvir? Encerro traduzindo uma citação que figura no encarte da obra (opa, duplo sentido?):

"Existe muita gente por aí fazendo um monte de barulho... aqui vai um pouco mais" (Arthur Wax)

Aqui (.mp3, 128 kbps)

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Unfinished Music No.1: Two Virgins [1968]

Hora de chutar-o-pau-da-barraca. Lançado no emblemático novembro de 1968, Two Virgins foi gravado na verdade em meados de março, portanto oito meses antes. Após o Wonderwall do George, e com o novo The Beatles revelando excentricidades como "Revolution #9", o terreno parecia mais que propício para John Lennon & Yoko Ono se assumirem como casal e parceiros na arte, com ou sem Beatles.
Mas naquela produtiva noite de março, o futuro casal mal se conhecia. Lennon e sua esposa Cynthia haviam retornado de Rishikesh, Índia - após o mergulho dos Beatles na meditação transcendental - e John parecia disposto a salvar o casamento já em ruínas. Porém, trocando telefonemas com Yoko, a quem ele conhecia desde 66, John aproveitou uma viagem da esposa para a Itália para convidá-la até seus aposentos em Kenwood, onde também se encontrava seu amigo de longa data, Pete Shotton. John e Pete haviam gravado inúmeras fitas durante aquelas semanas (assim como na juventude, os dois adoravam fazer rimas nonsense), e foram essas gravações a base do que viria a ser "Two Virgins".

A ideia é comovente, de tão ingênua. Os pombinhos começaram a noitada dividindo um ácido (acho que a essa altura o Pete já havia dado o fora) - hábito que eles levariam para a futura vida a dois, só que usando heroína. E então deram vazão à loucura produzindo enquanto a noite durava o que ouvimos durante o o disco. As divisões de sessão (Two Virgins 1, 2, etc.) não fazem sentido se pensarmos que a música (se é que podemos chamá-la assim) é como o retrato da capa, tirada meses depois. Um snaphot de um acontecimento, de um love affair. Este, especificamente, só foi consumado após a conclusão da gravação, daí vem a ideia de estarem se descobrindo e se apaixonando, indiferentes ao mundo lá fora, como dois virgens. E daí por diante nada seria do jeito que era antes na vida dos dois...

Após muitos assobios, uma série de sons randômicos no piano começam a aparecer, entrecortados por ruídos. Em seguida uma gravação com rotação alterada se contrapõe aos primeiros vocalizes de Ono, e o primeiro clímax é um grito bastante estridente. Lá pros 6:00 a coisa fica bem interessante: o disco gravado continua tocando (beeem lento), os ruídos se tornam mais intensos, e o piano chega a tentar uma progressão bastante atonal. Seja quem for o pianista do casal, mandou bem. Em geral é fácil achar tudo uma droga e jogar a culpa na voz da Yoko, mas nessa gravação em particular parece que tudo funciona. Os vocalizes de Ono tem um terreno perfeito na loucura concebida pelo Lennon-produtor, incluindo os ocasionais diálogos. Em termos de textura musical, o experimentalismo dos dois tá mais pra dadaísmo do que pra qualquer corrente musical estabelecida. Conclusão? Two Virgins é uma obra sem par, ame ou odeie. Espontâneo, corajoso, e altamente verdadeiro. O final do lado 1 é perfeito nesse sentido, com o "excuse me" de John para apertar o botão de parar do gravador, independente do climão que estava rolando entre a reverberação de algum instrumento e a voz da moça. O lado 2 é extremamente "mais do mesmo"; se não gostou da primeira metade, melhor desistir. A cereja do bolo mesmo é o bonus track do Cd editado em 1997, como parte dos relançamentos do catálogo de Yoko Ono. "Remember Love" é uma pérola, lançada originalmente como Lado B do compacto "Give Peace a Chance". A voz de Yoko é tão doce, que me faz crer que se ela não fosse tão vanguardista em suas concepções artísticas, ela poderia muito bem ter se tornado uma cantora folk/ pop bastante bem sucedida. O violão dedilhado de John lembra muito "Sun King", presente no Abbey Road. Obrigatório.

Download link (.mp3, 192 kbps)

domingo, 10 de outubro de 2010

Wonderwall Music by George Harrison [1968]

"Today is gonna be the day...". É, nem no título de sua música mais famosa o Oasis escapa de uma referência (geralmente inferior) aos mestres de Liverpool.

A segunda incursão Beatle em um projeto fora do grupo também foi uma trilha sonora. George Harrison recebeu essa incumbência no esquema "o que você fizer está bom", e assim foi. O resultado é surpreendente, pela diversidade do material e originalidade, vindo de um músico de uma banda de rock, que havia lançado apenas 02 músicas com orientação indiana (a saber: "Love You To" e "Within You Without You").
Gravado entre Londres e Bombay, "Wonderwall Music" é interessante tanto do ponto de vista da música indiana (as sessões na EMI indiana também renderam "The Inner Light", pros Beatles), como das partes mais experimentais, que ao que parece ilustram cenas do filme em que a psicodelia e o surrealismo imperam. Não é um disco de canções, que o compositor só viria a escoar de verdade dois anos mais tarde em "All things must pass", mas também não é um disco de experimentalismo gratuito (este, a gente fala em breve neste blog). George compôs com liberdade total e é assim que um piano honky-tonk em "Drilling a home" convive com instrumentos indianos (sarod, tabla, shanhais, cítaras...) em outros momentos. São 19 peças instigantes, mesmo sem imagens para ilustrar. "Ski-ing" é um ótimo rock, e assim como Paul em "The Family Way", Harrison não toca (pelo menos não creditado), e no encarte além dos músicos listados da Índia ou Inglaterra, ele agradece aos loops dos amigos. Eddie Clayton é na verdade Eric Clapton.. Rich Snare, Ringo Starr e Peter Tork dos Monkees não é creditado (como Harrison) tocando um banjo emprestado de McCartney. Ashish Kahn é o nome indiano em destaque como performer.
A ideia a princípio foi fazer uma mini-antologia de música indiana para continuar sua recente empreitada de divulgador oficial dessa música no Ocidente. Ele conta que a experiência de gravar na Índia foi instigante porque ele tinha que mixar tudo na hora, pois lá eles trabalhavam com apenas um gravador em mono. Nos termos de Harrison, eles estavam mal-acostumados em Londres com as mesas de 08 e agora 16 canais, então o desafio era fazer tudo acontecer "valendo". Fora isso, não havia isolamento acústico, então em algumas faixas 'indianas' é possível ouvir carros passando, e quem disse que isso é ruim? A sensação durante toda a audição é de música feita espontaneamente, sem pressão. Bem diferente do inferno astral que George viveria com os Beatles dali pra frente, até o fim.
Historicamente, além de ser o primeiro lançamento oficial de um Beatle fora do grupo (levando-se em conta que em "The Family Way" a música de McCartney é incidental), foi o primeiro LP lançado pela recém criada Apple Records, saindo semanas antes do Álbum Branco dos Beatles. Fora de catálogo, devemos agradecer a todos os deuses indianos ou não pela Internet e seus bancos de dados sagrados. Amen.

Download link (.mp3, 128 kbps)

domingo, 3 de outubro de 2010

Exercício pós-tonal e divagações octatônicas

Feito primeiro no Sibelius (para eu poder ouvir as notas), escrevi no Lily Pond (que é gratuito, bonito e gera midi) este exercício para a disciplina Estruturação Musical VI, que entregarei hoje na UFS. A ideia do post é testar esse aplicativo, também gratuito. Com ele dá para tomar gosto em publicar mais partituras e slides produzidos para trabalhos acadêmicos. Também posto o audio, para apreciação.

Daí pensei que poderia fazer o trabalho completo, e resolvi pesquisar sobre o objeto de estudo em si: a Escala Octatônica. Em sua dissertação de Mestrado pela Federal de Goiás, Marlou Peruzzolo Vieira (2010) oferece alguma luz quanto à sua conceituação:

 "Escala octatônica é um termo aplicável a qualquer formação escalar que faça uso de oito notas diferentes no âmbito de uma oitava (WILSON, 2008). (...) Designação para uma escala que consiste na alternância de segundas maiores e segundas menores (KOTSKA, 2006, p. 31). (...) Há, portanto, dois modos desta escala".


Segundo Adriano Gado (2009), em uma comunicação disponível aqui, "um dos interesses pelos compositores quanto à sua utilização reside na riqueza de propriedades internas que ela possui". Citando Joel Lester (1989), o autor aponta que por "conter quatro trítonos, seu uso sugere ênfase em divisões iguais da oitava".

Em tempo, o trítono é aquele intervalo ouvido no riff principal da música "Black Sabbath" (G - G - Db), e não por acaso, costumava ser conhecido como o diabolus in musica durante a Idade Média (WISNIK, 1999, p. 82). Sua constituição é de três tons inteiros, daí o nome. Mais sobre ele aqui.

Voltando à Esala Octatônica, Gado (2009) traz a categorização de Pieter Toorn (1983), que diz respeito às três possíveis transposições desta escala. Isto porque todas as outras "são repetições enarmônicas destas três possibilidades" (VIEIRA, 2010). Em acordo com Kotska (2006) e Wilson (2008), estas transposições podem ser resumidas tomando como ponto de partida as notas dó, dó# e ré. No quadro abaixo, transcrevo da forma sugerida por Toorn, a partir das notas mi, fá e fá#. É tão verdade que "dá na mesma" que podemos fazer a correlação. Na forma OCT 1 temos o ré, a OCT 2 contém a nota dó, e no OCT 3 aparece o ré bemol, enarmônico de dó#.

Por fim, é importante mencionar, que no jazz a "escala diminuta" e a chamada "dom-dim" são as duas formas da escala octatônica. Moral da estória, não é porque é pós-tonal que precisa ficar no academicismo. A aplicação na improvisação (especialmente em músicas de caráter modal) resulta em sonoridades bastante ricas e por isso devemos aprofundar nosso conhecimento na prática! Saiba mais aqui e bons estudos...


Sobre o título de meu exercício: um "octopussy" pode ser entendido como um gato de oito pernas.  Referência? "Meu Vizinho Totoro", obrigatório para os fãs de animação...


octatonico
octatonico.midi
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