terça-feira, 7 de julho de 2009

O Som e o Sentido II

Parte II
Modal


A escala, segundo Wisnik, é um “estoque simultâneo de intervalos, unidades distintivas que serão combinadas para formar sucessões melódicas”. Mas o que determina qual a ordem e direção de tais notas é a cultura, e quando estudamos o mundo modal, mais especificamente músicas não afetadas pelo sistema tonal, podemos identificar determinadas regiões e seus povos com a paisagem sonora evocada pelo modo. Apesar de haver um “paradigma natural subjacente à ordem dos intervalos melódicos” - a saber, a série harmônica, é a manipulação particular dos intervalos entre as notas que formarão as diversas escalas, ou modos e trarão com si significados específicos, também formalizados através da cultura ao qual está inserida.

Uma das mais antigas e amplamente utilizadas, a escala pentatônica pode ser explicada a partir de um engendramento de múltiplos intervalos através do ciclo de quintas, intervalos esses os mais básicos da série harmônica (levando-se em conta que a oitava é um desdobramento de um mesmo som). Hoje em dia usada em diversos contextos e estilos musicais, cada uma de seus notas representavam um modelo cosmogônico e político na tradição chinesa, que só faz sentido para tal configuração. Além disso, a ordem das notas e a estabilidade da relação entre elas é tão importante, que uma desconfiguração poderia fazer ruir impérios e destruir uma civilização inteira! É o sentido ritual da música, muito mais fundamental para o Oriente e seu mundo modal do que para os ocidentais. Assim como seus sistemas políticos e organizações sociais, as escalas do mundo modal são resistentes a mudanças, porque é na continuidade e manutenção da tradição que reside sua força, seu significado.

Uma característica da música modal é um eterno tributo ao centro, o que se confunde também com a ideia de um tempo circular, recorrente, um “tempo virtual” que não se reduz à sucessão cronológica, mas se faz através de um envolvimento coletivo e integrado do canto, do instrumental e da dança – tudo subordinado a um pulso fortemente definido, e o retorno ao centro já mencionado representado por uma tônica fixa. Desenhos melódico-escalares e ritmos tendem a se constituir uma coisa só. As melodias são manifestações do modo, e é assim que se dá a circularidade da escala, e essa circulação é uma modalidade de ritmo, enquanto figura de recorrência. Já a escala heptatônica, ou escala diatônica, contém internamente relações intervalares mais difíceis de administrar: uma sucessão desigual de tons e semitons, que dá a essa escala uma riqueza maior, mais também traz o problema do trítono, intervalo de três tons, dissonante e de alta instabilidade. É o tipo de intervalo capaz de “derrubar um império”. É justamente a eterna luta para resolver o dilema do chamado diabolus in musica que a música tonal encontrará as bases de sustentação e futura hegemonia. Se a pentatônica é a escala cuja história está especialmente vinculada ao Oriente, a heptatônica é a escala ocidental por excelência. Ela constitui o sistema escalar grego, os modos gregorianos e toda a música derivada desses até os dias atuais.

O que caracteriza o mundo modal é a associação a diferentes disposições afetivas e a diferentes usos rituais. Ente os gregos, cada modo era associado a uma região ou povo. O que acontece aqui e também no cantochão, é um rodízio de tônicas. Cada modo explora diferentes efeitos dados pelas diferentes distribuições de intervalos, dependendo da nota que se esteja tomando como tônica. O resultado é uma atribuição de sentido, (ethos) particular para cada modo.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

O Som e o Sentido

O Som e o Sentido

Hoje farei uma prova sobre esse livro do Wisnik, e também o "Curso e Dis-Curso do Sistema Musical (Tonal)" da Sekeff. A princípio esses trabalhos seriam resumos, portanto para não simplesmente jogar fora o que havia resumido, resolvi postar aqui, pelo menos os do Wisnik que já havia lido há mais tempo. Minha relação com esse livro começou quando eu ainda estudava Psicologia. Achei-o na biblioteca e devoreio-o sem entender metade de suas divagações extra-filosóficas acerca da música. Alguns anos depois ganhei um exemplar de presente de minha querida esposa, comecei a reler mas acabei deixando de lado. Qual não foi minha alegria ao descobrir que ia passar um semestre tendo que ler esse livro. Espero que meu resumo atraia outros leitores a essa obra, que deve ser adquirida na íntegra, é claro, ou pesquisada em alguma biblioteca....
Aqui vai um link de preços comparativos para adquirir o livro, que acompanha um cd muito bacana!
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Resumo Parte 1

WISNIK, José Miguel, O Som e o Sentido, 2ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.


Parte I

Som, Ruído e Silêncio

Pulso e freqüência são os elementos mais básicos num som musical, podendo ser observados em nosso próprio corpo, através do pulso sanguíneo e das ondas cerebrais. Na música, o pulso se apresenta na forma de durações e alturas, que estão intrinsecamente relacionadas. Um pulso constante aumentando de freqüência torna-se altura melódico-harmônica, a princípio grave, inconstante, tornando-se mais agudo e definido se continuarmos a aumentar sua freqüência até o ponto em que se torna inaudível para nosso aparelho auditivo. Nessa perspectiva, ritmo e melodia não são instâncias separadas, mas ganham em dimensão se as entendermos como indissociáveis entre si.

Uma onda sonora é bem mais complexa do que uma curva sinusoidal, daí a importância do estudo da série harmônica. O som depende do silêncio – também nosso sistema auditivo – e o silêncio só existe por causa do som, e, mais importante, essa onda é na verdade um feixe de ondas complexas, algumas mais ordenadas que outras. Ou seja, organização/ caos, definição/ ruído, presença/ ausência, fase/ defasagem, consonância/ dissonância, tensão/ repouso... Essa gama dialética de contradições inerentes ao fenômeno sonoro leva o autor a uma reflexão filosófica, comparando essa complexidade ao yin-yang da filosofia oriental, o que orientaria todo um entendimento do som musical como objeto metafísico, pela sua natureza não-material, e pelos diversos exemplos culturais de uso ritualístico, associados à religião e também às paixões do espírito, à capacidade da música de eliciar diferentes emoções nos seres humanos.

Mais uma relação dialética: o ruído, de acordo com a teoria da informação, significa interferência na comunicação. A música modal praticada em culturas não-influenciadas pelo tonalismo ocidental costuma integrar ruído à sua música. Da gama variada de instrumentos de percussão aos seus melismas vocais, tal música é viva e caótica, bem diferente da assepsia de uma igreja renascentista, preparada acusticamente para se entoar cantos gregorianos, idealmente livre de interferências sonoras exteriores. A música do mundo – do ruído branco do oceano à cacofonia do trânsito nas cidades – é barulho desordenado, e o que fazemos ao cantar ou tocar é instaurar ordem nesse caos. O que o autor propõe como “uma outra história das músicas” é traçar uma linha que vai de um tempo bem antes do marco zero que nos acostumamos a pensar a História da Música, o cantochão, até ponto de inflexão que ocorreu na virada do século XIX ao XX, com o advento do atonalismo. O que costuma ser pensado como uma revolução de linguagem – o serialismo, por exemplo, nega todo e qualquer centro tonal –, poderia ser interpretado como uma volta a uma predominância do pulso em detrimento das alturas. O minimalismo trabalha com manipulação de timbres e repetição. Se hoje o ritual de ouvir música significa apenas colocar um CD no aparelho, ou seja, temos o poder de interrompê-la ao bel prazer, a música ambiente está em toda parte, fazendo fundo – criando sentido – no meio da cacofonia incessantemente urbana.